[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº53 – Julho 2017]
Os rótulos são sempre redutores. Paul Schrader (de quem vimos, recentemente, o magnífico «Como Cães Selvagens») costuma dizer que, faça o que fizer, será sempre apresentado como o argumentista de «Taxi Driver»… O rótulo não lhe fica nada mal, mas é pouco. Algo de semelhante acontece com Kathryn Bigelow que nos habituámos a identificar como a única mulher na história de Hollywood que ganhou um Oscar de realização (em 2009, com «Estado de Guerra»).
Assim é, de facto, mas importa olhar para o trabalho de Bigelow como algum bem diferente de uma bandeira (feminina ou feminista). Como o demonstra exuberantemente o seu «Detroit», ela é, de facto, uma das criadoras do cinema americano contemporâneo que, com inteligência e contundência, tem sabido criar narrativas sobre momentos críticos da história dos EUA: o envolvimento militar no Iraque, em «Estado de Guerra», a perseguição a Osama Bin Laden, em «00:30, A Hora Negra».
O caso de «Detroit» seria tanto mais delicado quanto o seu tema nuclear — a discriminação social dos afro-americanos — envolveria sempre algum tipo de eco simbólico no presente (e para o presente). Assim é, mas a força de «Detroit» está longe de depender de qualquer facilidade em criar paralelismos entre épocas, afinal, bem diferentes — separadas por meio século, na verdade.
«Detroit» revisita os motins que abalaram aquela cidade, em 1967, tendo como um dos seus detonadores o facto de uma arma (aliás, um revólver para sinalizar o arranque de provas desportivas) ter sido disparada num Motel da cidade. A partir daí, gera-se um turbilhão de acontecimentos em que o racismo de alguns elementos das forças policiais emerge através de formas brutais de violência.
Bigelow consegue situar os acontecimentos no interior de uma dinâmica dramática muito mais geral que, em última instância, nos confronta com um tempo de muitos combates pelos direitos civis, transversais à sociedade americana. «Detroit» apresenta-se, assim, como um prodigioso labirinto de eventos que, apesar da sua extrema elaboração, nunca perdem uma insólita e contagiante respiração «documental» — grande cinema político, quer dizer, sobre as tensões internas da polis. JOÃO LOPES
Título original: Detroit Realização: Kathryn Bigelow. Elenco: John Boyega, Anthony Mackie, Algee Smith. 143 min. EUA, 2017