Depois do romanesco voluptuoso de «A Criada» (2016), o romance thrillesco de «Decisão de Partir». São sempre fortes as designações que se aplicam ao cinema de Park Chan-wook, embora este último filme (valeu-lhe o prémio de melhor realizador no Festival de Cannes) denote uma espécie de maturidade assumida na abordagem. Desde logo, muito menos violento do que aquilo a que nos habituou a imagem de marca do realizador sul-coreano, «Decisão de Partir» agarra a matéria básica do drama policial para baralhar as regras desse género com uma câmara ágil e um detetive reduzido à “normalidade” da profissão, suscetível de não controlar sentimentos inapropriados.
Assim acontece quando se depara com a viúva de um homem cujo cadáver foi encontrado perto de um penhasco, assumindo-se que a causa da morte foi uma queda ocorrida durante uma escalada. A investigação, porém, levanta suspeitas sobre essa jovem mulher de rosto aberto e estranhamente puro que prende a atenção do detetive por razões pouco forenses. Ele começa então a vigiá-la à distância, através de binóculos, quer nas horas de trabalho dela (cuidadora domiciliária de idosos) quer em casa, até que nesse processo se dá uma mágica aproximação física: ao observá-la pelas lentes, ele imagina-se sentado ao seu lado, a respirar o mesmo ar, a receber as cinzas do seu cigarro noturno… Para reproduzir tal efeito da imaginação, Park Chan-wook manda às urtigas as leis da física privilegiando a fantasia romântica com truques visuais, que de resto se manifestam de maneiras diferentes ao longo do filme.
O que mais fascina em «Decisão de Partir», para além desse romantismo transgressivo (falamos de um detetive casado), é o modo como o cineasta coreano trabalha as possibilidades plásticas do cinema, mexendo com as linhas do tempo e do espaço como quem se diverte a fazer desvios inesperados. Vejam-se, por exemplo, as duas brilhantes perseguições nas ruas e telhados de Busan, tão coreográficas quanto realistas, que servem apenas para transmitir visões da ação do protagonista, especificamente desenhadas para os olhos da femme fatale.
Há qualquer coisa de hipnotizante em tudo isto. Uma elegância moderna que acena a referências clássicas (Hitchcock), misturando momentos de humor quotidiano e conduzindo o drama suavemente até ao ponto da fatalidade romântica. Estamos sempre em vertigem física e simbólica, tal como as personagens, num jogo narrativo que mantém uma doce sensação de desequilíbrio até ao fim. Mais precisamente, estamos na pele do detetive; tão insones como ele.
Título original: Heojil kyolshim Realização: Park Chan-wook Elenco: Park Hae-il, Tang Wei, Lee Jung-hyun Duração: 139 min. Coreia do Sul, 2022
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