«Cruella» é um show! É uma prequela em imagem real do clássico de animação «101 Dálmatas» (1961) e uma inspirada reinvenção da Disney. A obra recorda-nos o melhor que o estúdio tem realizado nas suas recriações das animações para imagem real, como é o caso do filme que abriu esta tendência, «Uma História de Encantar» (2007), ou «Alice no País das Maravilhas» (2010) e especialmente «O Livro da Selva» (2016) – não ficam na memória os desapontamentos de «Alice do Outro Lado do Espelho» (2016) e «Aladdin» (2019).

«Cruella» partilha a mesma dinâmica de «Maléfica» (2014) na desmistificação de uma personagem considerada uma vilã que perdeu as estribeiras. Os argumentistas Dana Fox e o mais experiente Tony McNamara construíram uma história que vai deliciar os espectadores com um ritmo frenético e pouco episódica, permitiram que a narrativa e os personagens pudessem atingir a sua plena potencialidade. O filme em nenhum momento parece apressado, tudo tem o seu tempo e a aventura e o humor ofuscam os instintos mais negros de vilania dos personagens. A dupla de protagonistas Emma Stone (Estella / Cruella) e Emma Thompson (a Baronesa) estão delirantes. As personagens são mais perdigueiros do que dálmatas, astutas e com um faro para partir a louça toda. A solo ou a contracenar, uma com a outra, podemos jurar que saltam faíscas do ecrã. O prazer e o envolvimento de ambas é sobejamente evidente em cena.

Além da missão de entreterem o espectador, os actores tinham como difícil tarefa conferir vida a personagens clássicas, mais do que isso, o papel de humanizarem personagens icónicas como Gaspar e Horácio, os actores Joel Fry e Paul Walter Hauser têm duas belíssimas presenças neste filme. A tarefa foi alcançada com uma construção das personagens a partir de tenra idade no caso de Cruella, Gaspar e Horácio. Estes últimos dois com a fama de serem patifes muito desastrados a partir do clássico de animação de 1961, neste filme, são figuras com quem podemos criar empatia, são carteiristas que fazem autênticos golpes de circo para sobreviverem e mais tarde darem uma oportunidade a uma amiga. Eles também são uma espécie de voz/consciência da moralidade de todos os acontecimentos.

Sem querer entrar nos detalhes da narrativa – esta tem de ser descoberta e desfrutada pelos espectadores, preferencialmente numa sala de cinema –, poderemos afirmar que o filme se relaciona com um confronto titânico entre duas figuras iminentes (Cruella e a Baronesa). As mesmas vão descobrir que são antagonistas mas partilham um desafortunado passado comum. Os acontecimentos desenrolam-se sobre o pano de fundo da moda, circa anos 1960, em Londres. Os dálmatas também têm direito a uma inversão na polarização, neste filme, são maus como as cobras, não têm nada de dócil, sendo claro que também estarão no centro de todo o ódio de Cruella. A doçura dos dálmatas da animação é substituída por dois adoráveis rafeiros no filme que são personagens activos e que trazem para si as luzes da ribalta – algumas das melhores cenas são com os rafeiros que integram o gang de bons patifes de Cruella.
Em termos artísticos, a Disney esmerou-se na direcção de arte, por exemplo: o elenco principal utilizou 277 roupas; foram utilizados 40 mil adereços; houve 96 cenários oficiais; a banda-sonora é das melhores que já ouvimos, só grandes malhas. Visualmente o filme é deslumbrante e foi pensado ao ínfimo pormenor. A realização de Craig Gillespie é perfeita, consegue combinar o melhor da sua carreira independente (vejam a genialidade de «Lars e o Verdadeiro Amor» e «Eu, Tonya») incutindo doses absurdas de humor negro e insólito com os desígnios da grande produção mas também a preocupação de criar personagens incompreendidas, que possuem no seu cerne um lado bom e afetuoso.

«Cruella» é um filme para toda a família. Possui uma história plena de aventura que nos encanta e que nos faz rir desalmadamente com seus os divertidos gags. Cruella é uma personagem que nunca será vista da mesma forma. O mito foi reescrito.

Título original: Cruella Realização: Craig Gillespie Elenco: Emma Stone, Emma Thompson, Joel Fry, Paul Walter Hauser, Mark Strong. Duração: 134 min. EUA/Reino Unido, 2021

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