Crónicas de Vesper

CRÓNICAS DE VESPER

CRÓNICAS DE VESPER

Após o colapso do ecossistema da Terra, Vesper (Raffiella Chapman), uma menina de 13 anos luta para sobreviver enquanto cuida do seu pai, Darius (Richard Brake), paralisado numa cama. Num mundo agora alagado de lama e fungos viscosos, Vesper tem apenas uma missão: encontrar uma forma de desbloquear sementes e torná-las férteis novamente. Com o objetivo arriscado de chegar até à Cidadela, onde vivem só alguns e em abundância, para aí poder prosseguir no seu projeto que pode salvar vidas, Vesper encontra um dia Camelia (Rosy McEwen) nos destroços de um acidente. Esta mulher, moderna e enigmática, guarda um segredo, que trará a Vesper novas pistas e a forçará a usar a sua inteligência, forças e capacidades de bio-hacking para lutar pela possibilidade de ter um futuro.

Depois de «Aurora», de 2012, a realizadora lituana Kristina Buozyte e o argumentista francês, Bruno Samper, que neste filme assinam em dupla a realização, regressam para esta produção franco-belga-lituana, filmada na capital da Lituânia, Vilnius, e com poucos recursos no espectro de um filme de ficção científica. E é precisamente nessa habilidade de se fazer tanto com pouco que encontramos a magia de «Crónicas de Vesper». Num ambiente distópico, a iluminação do director de fotografia Feliksas Abrukauskas, inspirada nos quadros de Vermeer e Rembrandt, oferece o tom certo para percebermos em que mundo Vesper e os seus pares se encontram, depois de um apocalipse que colocou aquela área na sombra de um planeta outrora verdejante e pleno de vida.

Nesta era de Vesper, a tecnologia ainda está ao serviço, mesmo que datada e dependente de uma energia que já se esgotou – o pai de Vesper comunica com a filha através de um drone que a acompanha para todo o lado –, o sangue destes seres excluídos da Cidadela é trocado por sementes pelo tio de Vesper, o charlatão (Eddie Marsan) que revira o estômago de qualquer um ao vê-lo aproveitar-se da inocência de crianças, e os “Peregrinos” são seres que nunca mostram a cara e que, em silêncio absoluto, apenas apanham e transportam sucata.

O mundo de fantasia de Buozyte e Samper não precisa de muito para nos levar da escuridão de um mundo cheio de vermes e fungos – no qual a alimentação é feita à base de insetos, e os emplastros para curar feridas são viscosos e orgânicos –, para a beleza e deslumbramento de uma estufa de plantas que parece sair de um conto de fadas psicadélico.

«Crónicas de Vesper» convida-nos a entrar na sua bolha, a ter tempo para deixá-lo desenrolar-se, sem expectativas, exigindo-nos, apenas, disponibilidade para nos deslumbrarmos com o mundo incrível criado pela dupla de realizadores sem uma produção megalómana por trás. Pede-nos, sobretudo, para refletirmos, pois este futuro distópico de um ecossistema falhado não é já tão longínquo ou imaginário. Nesse “futuro”, a maior luta não será pela tecnologia mais desenvolvida; será sobre sementes, sobre aquilo que nos trouxe e manteve vivos, sobre aquilo que pode gerar vida. As crianças serão os novos super-heróis e Vesper é um deles, com capacidade para mudar tudo a que se propõe, sabendo conciliar a tecnologia e a natureza, e sobreviver num mundo infértil, no qual o amor continuará a ser a cola que nos liga, e, sobretudo, a chama que alimenta em cada um a capacidade e a força de estar à altura do maior dos desafios: viver.

Título original: Vesper Realização: Kristina Buožytė, Bruno Samper Elenco: Raffiella Chapman, Eddie Marsan, Rosy McEwen Duração: 114 min. França/Lituânia/Bélgica, 2022

[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº88, Dezembro 2022]

Foto © Lukas Salna