Corações de Pedra – Gudmundur Arnar Gudmundsson em entrevista

Corações de Pedra – Gudmundur Arnar Gudmundsson em entrevista

Ganhou o Queer Lion no Festival de Veneza, mas não é essencialmente pela matéria queer que vamos recordar «Corações de Pedra». A universalidade da narrativa juvenil, sobre a educação sentimental de dois amigos num lugar inóspito, é o que lhe dá genuíno esplendor dramático. Falámos com o realizador islandês Gudmundur Arnar Gudmundsson sobre esta primeira longa-metragem.
Inês N. Lourenço

À semelhança das suas curtas-metragens, «Corações de Pedra» é um filme que coloca o olhar sobre uma história de juventude num lugar remoto. O que é que o atrai neste tema?
Gudmundur Arnar Gudmundsson: Eu escrevi «Corações de Pedra» antes das minhas curtas-metragens. O filme baseia-se nos anos em que vivi numa pequena localidade na Islândia, e inspira-se nas pessoas que conheci nesse meio, mas os eventos são ficcionais. No fundo, o caminho que fiz com as curtas-metragens começou por ser uma forma de perceber se era capaz de filmar miúdos, e acabei por relacionar-me muito facilmente com histórias sobre a juventude ou por reforçar esse gosto e entusiasmo que já tinha. Uma vez que sou eu que escrevo os meus argumentos, entendo a escrita já como um ato dramático, e nesse sentido, é qualquer coisa que faz parte da intimidade. Todos passámos pela adolescência. Além disso, tenho um particular fascínio por histórias sobre a experiência da “primeira vez”.

E de onde vêm essencialmente as histórias para os argumentos que escreve?
Gudmundur Arnar Gudmundsson: É um trabalho intuitivo. Porque quando escrevo começo pelas personagens, sigo-as de modo a que, intuitivamente, elas deem rumo à história. E é assim que vão surgindo linhas narrativas. Nunca me senti o “mestre” das minhas histórias, limito-me a obedecer à sua orientação natural.

Mas há uma sensibilidade para este universo juvenil que parece vir de alguém com referências…
Gudmundur Arnar Gudmundsson: Sim, gosto muito de alguns filmes dos anos 70/80, e um que estimo particularmente é o «Conta Comigo» [Rob Reiner, 1986]. É um filme cuja abordagem da história é feita através dos miúdos, com um enorme respeito por eles. Hoje em dia não vejo tantos filmes com este grau de honestidade e realismo em relação aos jovens. O ponto de vista agora é quase sempre o dos adultos.


E como foi trabalhar com atores que, além de muito jovens, não são profissionais?
Gudmundur Arnar Gudmundsson: Na Islândia não temos uma cultura de atores profissionais. Por isso, o processo de casting foi muito longo, mas conseguimos este grupo esmerado. Fomos descobrindo as suas capacidades de representação e ensinando-lhes o essencial… A primeira coisa senti em relação àqueles miúdos foi responsabilidade. Isso era muito claro para mim. Tinha que me certificar de que faziam bem o que tinham a fazer, e que se sentiam bem a fazê-lo, para serem espontâneos. Acederam sempre às minhas indicações. Quando se trabalha com atores mais velhos essa responsabilidade acaba por ser partilhada.

Falamos de um filme em que pôde controlar todo o processo. Mas, se no futuro lhe aparecesse uma oportunidade para trabalhar numa grande produção, por exemplo em Hollywood, conseguia imaginar-se nesse contexto?
Gudmundur Arnar Gudmundsson: Preciso de muita liberdade para trabalhar, mas também consigo imaginar-me em grandes produções, no futuro, sim. A minha vontade é essa, mantendo sempre a liberdade artística. E tenho esperança de que as duas coisas possam andar a par.
Pergunto isto porque, com a belíssima paisagem que tinha à sua volta, conseguiu manter mais alta a nota íntima do filme, em vez de privilegiar o “efeito postal” do cenário, como o fazem muitas grandes produções…
Eu e o meu diretor de fotografia [Sturla Brandth Grøvlen] falámos muito sobre isso. Basicamente, mostrar a natureza é qualquer coisa que está dependente da própria ordem dramática. A nossa regra aqui era mostrá-la apenas se acrescentasse alguma coisa à história ou ao sentimento de uma cena. E, de facto, foi quase como saltar um obstáculo, porque é muito fácil deixarmo-nos deslumbrar pela paisagem. E isso acontece muito na Islândia, sobretudo com as produções estrangeiras.


Não existem muitos elementos no filme que nos deem a precisão de uma época. Onde é que o podemos situar temporalmente?
Gudmundur Arnar Gudmundsson: É um retrato mais próximo da realidade do ano 2000. Isto acontece antes da moda dos smartphones… Pareceu-me ser uma época fácil de retratar em termos de realismo, sem grandes apontamentos temporais.

O retrato da realidade atual numa aldeia islandesa ainda corresponde à mentalidade fechada que vemos no filme?
Gudmundur Arnar Gudmundsson: Acho que hoje em dia, de um modo geral, estas aldeias estão mais abertas, especialmente por causa dos turistas. Há muito turismo na Islândia, e em função disso as mentalidades também mudam.

Uma das coisas que me pareceu muito bela em «Corações de Pedra» foi a relação dos ritmos da natureza com a construção narrativa. Sobretudo aquela constância dos animais que aparecem mortos, como uma espécie de sacrifício…
Gudmundur Arnar Gudmundsson: Isso é curioso, porque como morei na cidade antes desses anos da aldeia, uma das coisas que me fascinava na vivência mais física da natureza, por ser diferente, era a relação que os meus amigos tinham com os animais. Havia os que eles tratavam com respeito, e os outros que faziam parte da cadeia alimentar. E por vezes geravam-se situações de competição, como o filme reflete. Particularmente, essa imagem muito presente dos animais mortos acaba por ser também para mostrar que a morte não é uma coisa distante, está mesmo ali, entre os miúdos, entre as suas dores de crescimento.