Lutar por quê? Ou porquê? No contexto actual, em que novas guerras se vão insidiosamente instalando e proliferando à nossa volta, pode parecer insensível falar de “luta” no seu sentido lúdico ou mais lato. Mas as lutas quotidianas – por melhores condições de vida, pelo direito à integridade social, pela igualdade de género e determinação sexual, etc. – são também elas importantes e não devem ser esquecidas. No filme «Cassandro», que conta a história verídica de Saúl Armendáriz (interpretado por Gael García Bernal), são vários os conceitos de luta que se misturam e complicam para dar forma à história de vida do primeiro gay a dominar os ringues de luta livre no México nos anos 80 e 90.
Nascido e criado na fronteira entre os EUA e o México, Saúl passou por muitas dificuldades, não só financeiras, mas também por descriminação devido ao seu jeito efeminado. Essa experiência, sobretudo o abandono e desprezo do próprio pai, deixou marcas profundas que o tempo não conseguiu apagar. Mas foi justamente num meio especialmente machista e preconceituoso, o mundo da luta livre, que Saúl viria a encontrar o seu lugar de afirmação. Conhecido por vários nomes – “Rosa Salvaje”, “o Liberace dos ringues” –, Saúl acabou por ganhar fama como Cassandro, uma verdadeira estrela entre os exóticos – lutadores que adoptam um estilo queer ou drag.
Apesar da tradição dos exóticos remontar aos anos 40, a maioria dos lutadores que se maquilhavam e vestiam de lantejoulas subiam ao ringue para cumprir um papel sobretudo cómico, para serem humilhados e invariavelmente vencidos. Foi Cassandro quem virou o jogo. Assumindo-se abertamente como homossexual, o seu carisma e talento impulsionaram uma mudança surpreendente na atitude de muitos apreciadores de luta livre, e até mesmo de outros lutadores. O caso mais marcante foi a luta entre Cassandro e El Hijo del Santo, um campeão mundial e figura muitíssimo respeitada no meio. Ao mesmo tempo, o seu exemplo e popularidade serviu de inspiração a outros homens que encontraram nele a força de se assumirem.
O filme, realizado por Roger Ross Williams — vencedor do Óscar com «Vida, Animada» (2016) —, contou com Saúl Armendáriz como consultor, o que poderá ter contribuído para o tom marcadamente pessoal e íntimo do retrato. Vale a pena ver e confirmar também o indiscutível talento de Gael García Bernal em mais uma grande performance.
Título Original: Cassandro Realização: Roger Ross Williams Elenco: Gael García Bernal, Roberta Colindrez, Perla De La Rosa Duração: 107 min. EUA, 2023
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº99, Outubro 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=doDM5I07fxc