É antiga a ligação de Johnny Depp com a máfia, pelo menos no cinema. Embora pouco lembrado – apesar de ter sido apelidado de “‘O Padrinho’ dos anos 1990” –, à sua época, «Donnie Brasco» (1997), de Mike Newell, colocou o eterno Edward Mãos-de-Tesoura nos calcanhares de mafiosos ítalo-americanos, num resgate da estética social policial da década de 1970. Por isso não surpreende a facilidade com que um ator como ele – tão chegado a caracterizações que desfiguram sua imagem com perucas, maquiagens e olhos coloridos – se encaixa na figura do criminoso James Whitey Bulger, ferrabrás de Boston. No recém-encerrado Festival de Veneza, críticos e colegas se assombraram com o amálgama de almas entre Depp e Bulger, compondo, na simbiose, um vilão como raras vezes se viu no cinema. Não se trata de uma reconstituição fiel ou sociológica de um contraventor do mundo real mas sim de um cruzamento entre memórias reais da literatura jornalística policialesca para, a partir delas, o astro construir, em parceria com o diretor Scott Cooper, um ensaio sobre a Maldade e seus pactos com o Poder institucional.
Celebrizado nos anos 1990 como sendo um ator avesso às armadilhas inerentes a galãs, afeito a parcerias com diretores autorais como Jim Jarmusch («Homem Morto»), Emir Kusturica («Arizona») e sua alma gêmea, Tim Burton («Ed Wood»), Depp mudou de estratégia nos anos 2000 e flertou com o fascínio dos milhões. Virou Jack Sparrow, o bucaneiro de trejeitos efeminados da série «Piratas do Caribe» e se acomodou ali. Pouco transgrediu. Pouco ousou, fora cantar – e muito bem – como o barbeiro da Rua Fleet em «Sweeney Todd» (2007). Mas o tempo foi passando, a idade chegando e o dinheiro sumindo (e os fãs também). Era hora de reinvenção. Bulger representou isso. E Depp agarrou o papel com uma fome de quem não se alimenta (de aplauso) há anos. E seu empenho anima Scott Cooper a se tornar um cineasta de maior arrojo e maior risco, indo além da convencionalidade de seu «Crazy Heart» (2009) e comunicando melhor do que o devastador «Para Além das Cinzas» (2013).
Mais do que uma apoteose para o talento de Depp, «Black Mass – Jogo Sujo» é um filme de máfia que cumpre a cartilha do género indo além dela, desapegado dos hábitos audiovisuais de montagem da referência padrão: «Tudo Bons Rapazes» (1990). Cooper não quer filmar (e sobretudo não quer montar) à moda deste seminal Scorsese. Ele quer ir mais fundo no baú do cinema, dialogando com filmes de maior rusticidade, sobretudo «Horas de Desespero» (1955), de William Wyler, e fazer um tratado sobre o Mal e sua implacabilidade. A ambição de filosofar é fortificada por uma montagem que valoriza diálogos e ações sem saídas bruscas, sem pressa. Ele quer fazer pensar e quer fazer a dor se fazer sentida, doída. Resultado: um dos melhores filmes do ano.
Título original: Black Mass Realização: Scott Cooper Elenco: Johnny Depp, Benedict Cumberbatch, Dakota Johnson, Joel Edgerton, Jesse Plemons, Kevin Bacon, Peter Sarsgaard, Corey Stoll, David Harbour Duração: 123 min. EUA/Reino Unido, 2015
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº30, Agosto 2015]
https://www.youtube.com/watch?v=R_F-lVhSfx8