Antes da Meia Noite

ANTES DA MEIA-NOITE

ANTES DA MEIA-NOITE

O excesso de zelo levou-me a cometer um terrível erro: rever os dois filmes que precedem este belíssimo «Antes da Meia-Noite». Existem filmes que foram feitos para se projectar na memória, para o bem e para o mal, crescem, reinventam-se connosco. Do primeiro breve encontro em Viena, no Verão de 1995 («Antes do Amanhecer»), entre Celine (Julie Delpy), uma jovem estudante francesa, e Jesse (Ethan Hawke), um americano impulsivo e romântico, ficou a promessa de um amor tão intenso quanto impossível. O desejo de dar forma ao absoluto tem os seus riscos, e quando em 2004 o par se volta a encontrar («Antes do Anoitecer»), desta vez já não tanto por obra do acaso mas porque, numa original e bem-sucedida tentativa de restabelecer contacto, Jesse escreve um livro inspirado na sua experiência com Celine, o encontro dá-se numa livraria em Paris. Jesse é agora um escritor famoso, homem (mal)casado e com um filho nos EUA. Celine uma ambientalista convicta, com uma vida emocional confusa e distanciada. Na primeira troca de olhares, de cumprimentos desajeitados, é já claro que os dois não conseguirão resistir muito tempo ao impulso da velha chama. Aquilo que era apenas uma sugestão em «Antes do Anoitecer» é agora, passados mais de 9 anos, confirmado: Jesse perdeu mesmo o avião e também a cabeça – quem não perdia?

Porém, é interessante notar como este novo filme começa não com o casal, mas com uma cena tensa, de despedida, entre Jesse e o seu filho (Seamus Davey-Fitzpatrick), agora adolescente, que vai apanhar um voo de regresso a Chicago onde mora com a mãe (“a ex-mulher problemática”, como nos é descrita sempre na terceira pessoa). Isto é interessante e significativo porque mostra como as suas vidas já não são só deles. Quando Jesse chega ao carro, Celine está ao telefone, trata de questões de trabalho. Dentro do carro estão duas meninas que dormem, são as suas filhas gémeas. Descobrimos então que a família está a terminar as férias em casa de um escritor grego que os acolhe na sua casa à beira mar, entre oliveiras e penhascos – a ironia é dupla, este lugar paradisíaco é também o cenário de um país em agonia e o palco do possível colapso da relação dos dois.

Como em todos os filmes de Richard Linklater as palavras não substituem a acção, elas são a acção. Têm uma força cinética que faz avançar o filme. Fazendo lembrar «Cópia Certificada» (2010), a longa cena no carro, depois de deixar o aeroporto, é extraordinária no modo como através da conversa consegue captar perfeitamente a dinâmica do casal, os seus jogos de poder, a cumplicidade, o humor particular, mas também o cansaço, a frustração e o rancor com que o tempo permeou esta relação. Em «Antes do Anoitecer», Celine tinha deixado uma hipótese a ecoar no tempo: “Maybe we are only good at brief encounters, walking arround in European cities, in warm climate.” Os breves encontros… as conversas e caminhadas em clima ameno. É isto o amor? Pode esse demónio resistir às tempestades que fazem chover?

De regresso a casa do anfitrião, sentadas à mesa diferentes gerações, diferentes tipos de amantes e de seres amados, há lugar para um simpósio à maneira de Platão. Cada um dos presentes oferece a sua visão sobre a natureza do amor. Os mais jovens são agora, naturalmente, os mais desencantados – o contraste serve para sublinhar a esta luz o suposto idealismo naïve de «Antes do Amanhecer». Para o jovem casal, ciber-apaixonado, é evidente e natural que mais cedo ou mais tarde se venham a separar. Existe paixão, compromisso, existe a colonização do outro, existe negociação, etc., mas já não existe amor eterno. Por seu lado, Celine e Jesse não oferecem nenhum discurso, oferecem antes momentos das suas vidas. Momentos que parecem tão reais, tão íntimos que transformam por vezes a nossa presença em qualquer coisa vagamente voyeurista.

Apesar de já não existir em «Antes da Meia-Noite», como nos filmes anteriores, a mesma sensação de urgência que a sedução aliada aos limites de tempo impostos com a exigência de despedidas forçadas ajudava a criar enquanto estratégia dramática, o tempo é mais uma vez um elemento muito presente e continua, em parte, a determinar a forma do filme. Mas quando se tem todo o tempo, o que é que se faz com ele? Normalmente discute-se… à medida que o tempo avança e a noite chega a meio, o tom indeciso de comédia romântica cede definitivamente o lugar a situações mais sérias e pesadas. Os diálogos, escritos por Linklater em estreita colaboração com os actores, são brutais, honestos e acutilantes. É isto o amor? Uma colecção de culpas, rancores, pequenas traições?

O amor não se leva pela mão. Tentar contê-lo, definir a sua natureza conduz-nos, como às personagens do filme, à Grécia, e à bela península rochosa de Peloponeso. A escolha deste local não parece acidental (como foi Viena) ou circunstancial e lógica (como Paris). Peloponeso foi, como sabemos através d’O Banquete de Platão, a casa de Diotima de Mantinea, a sacerdotisa que iniciou Sócrates nas artes do amor. A predominância dos diálogos na obra de Linklater, e a extrema importância que ele atribui à filosofia na sua formação enquanto realizador e argumentista autodidacta, leva a crer que esta ligação é deliberada e desejada.

O texto de O Banquete é todo ele excepcional, e, pela complexidade do seu objecto, só funciona realmente como um todo. Contudo, quando o filme se aproxima do final, é o discurso de Sócrates, dando voz a Diotima, que surge na nossa cabeça. É com grande mestria que ela desmonta o mito de que o amor nos faz completos, nos sara as feridas e dá conforto. Pelo contrário, o amor é incompleto e imperfeito, anda sempre insatisfeito, sempre à procura. Ele é inimigo da preguiça e só se mostra aos amantes como desafio. É nesta nota, de desafio, mas também de humor e expressão de desejo, que Jesse e Celine aceitam corajosamente entrar mais uma vez juntos nessa noite escura. Para terminar, de forma simples e prosaica, a realidade é a realidade, está aí, assim mesmo, tantas vezes redundante. É preciso, sempre que possível, olhá-la com humor, generosidade. Neste sentido, «Antes da Meia-Noite» oferece-nos uma importante lição de filosofia prática: é que sem sexo e sem humor, não há nada que resista.

Título original: Before Midnight Realização: Richard Linklater Elenco: Ethan Hawke, Julie Delpy, Seamus Davey-Fitzpatrick. Duração: 109 min EUA, 2013

[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº10, Junho 2013]