«Amor em Sangue» tem laivos de clássico instantâneo. Sangue, suor e paixão ao rubro são ingredientes poderosos num thriller a mil. Depois de «Saint Maud» (2019), a realização de Rose Glass revela-se mais uma vez um acto de pura sedução. A realizadora britânica mudou-se de armas e bagagens para o Novo México para filmar um romance tão fervoroso e radiante quanto o próprio sol. A solidão tem papel central nesta trama e o amor é uma tábua de salvação, mas nem tudo é linear, pois temos alguns corpos pelo meio…

A história de amor, armas e músculos orbita em torno dos papéis centrais de Lou (Kristen Stewart) e Jackie (Katy O’Brian). A acção desenrola-se numa pequena cidade do Novo México, no final dos anos 1980. Lou parece querer deixar algo para trás, sobrevive entre os seus one night stands, as cassetes de auto-ajuda (para deixar de fumar) e gere um ginásio manhoso na cidade. Jackie saiu de casa, no Oklahoma, faz pela vida e dorme debaixo dos viadutos na sua travessia à boleia até Las Vegas onde sonha ganhar um título de culturismo, o seu bilhete para mudar de vida e comprar uma casa à beira-mar. O mundo de ambas vai mudar radicalmente – uma espécie de fusão nuclear – quando Jackie entra no ginásio de Lou. O romance surge instintivamente como se fosse um gigantesco chuto de adrenalina, mas esse sentimento não vem só…

Ed Harris

A trama abre o livro e aparecem as complicações da família de Lou e o início das alucinações dos esteroides que Jackie injecta para ter vantagem na corrida ao ambicionado título de culturismo. Este é um romance cor de sangue. O pai de Lou (Ed Harris) é um psicopata violento. Colecionador de insectos, ele é o maior parasita de todos. Controla mais do que um clube de tiro da cidade e Jackie começa a trabalhar no local sem saber que Lou Sr. é um traficante de armas… A violência neste filme é contundente, tudo muito seco e arrasador.

Jena Malone interpreta Beth, a irmã de Lou, um saco de pancada do marido (Dave Franco), que trabalha para Lou Sr. Beth anda sempre com a cara desfeita pela violência. É neste cenário de gente desmiolada, white trash e mullets (o foleiro corte de cabelo tainha) que o romance de Lou e Jackie vai evoluindo em sequências intensas, sensuais e muitíssimo bem filmadas. 

Kristen Stewart assenta que nem uma luva neste rebuscado desempenho. Doseia a melancolia, o intelecto e o amor numa personagem que, quando arrastada pelas areias movediças de um mundo violento, tenta esquecer o passado, mostrar a sua verdadeira face. Katy O’Brian é uma revelação. Este é o primeiro grande papel da sua carreira, num desempenho que combinou o lado ultra-físico com a paixão crua e a raiva adormecida. As drogas transformam a personagem numa espécie de rolo compressor em formato Hulk.

Dave Franco

Além desta bombástica dupla, esta odisseia conta com papéis secundários que foram soberbamente destilados por actores, muito mais do que cromos de serviço, são figuras complexas como os casos de: Ed Harris, a ser viperino, dando forma a um calculismo assassino, ambição e prepotência e um desequilibrado afecto paternal; Dave Franco a interpretar um monstro que é um cobarde; Jena Malone como a representação das contrariedades do amor que ultrapassam o entendimento racional; e Anna Baryshnikov, que está intoxicada por Lou e pelas drogas.  

O romance, a violência e a procura de uma sensibilidade com os corpos, o amor numa forma orgânica que abre a existência de um lado onírico no filme em sequências fantasiosas que levam a imaginação para outros lugares. É um trabalho com mérito total e absoluto da visão de Rose Glass (e a sua equipa) a partir de um argumento original que escreveu com a sua co-argumentista Weronika Tofilska. E porque estamos a falar de um lado que também procura o etéreo, vale a pena destacar a orquestração de Clint Mansel e a direcção de fotografia de Ben Fordesman que adicionam mais camadas sensitivas em «Amor em Sangue», uma fascinante experiência cinematográfica. A estreia faz-se nos cinemas e acreditamos que é um daqueles filmes que vai marcar os espectadores por muitos e bons anos trazendo à memória filmes memoráveis como «Amor à Queima Roupa» [«True Romance»] (1993) ou «Um Coração Selvagem» [«Wild at Heart»] (1990).

Título original: Love, Lies, Bleeding Realização: Rose Glass Elenco: Kristen Stewart, Katy O’Brian, Ed Harris, Jena Malone, Dave Franco, Anna Baryshnikov Duração: 104 min. Reino Unido/EUA, 2024

Foto: © Anna Kooris

https://youtube.com/watch?v=_P5HFZHL-QI

ARTIGOS RELACIONADOS
Somebody I Used to Know
SOMEBODY I USED TO KNOW

«Somebody I Used to Know» é uma agradável surpresa no género melodrama. Escrito a duas mãos, pelo realizador Dave Franco Ler +

Crimes do Futuro
CRIMES DO FUTURO

Preparado para abrir 2023 a filmar, num set em Montreal designado para acolher a trama sobrenatural de «Shrouds», com Vincent Ler +

Gravidade
GRAVIDADE

Explorar a ideia, velhinha, por sinal, de que lá em cima, por muito que grites, ninguém te ouve. É um Ler +

CAFÉ SOCIETY

50 anos. 47 filmes. Será que a matemática pode auxiliar uma crítica em apuros? Vista à luz da última década Ler +

O Meu Nome é Alice/Still Alice
O MEU NOME É ALICE

Por um lado, a possibilidade (quase a certeza…) de que «O Meu Nome É Alice» vai dar um Oscar de Ler +

Please enable JavaScript in your browser to complete this form.

Vais receber informação sobre
futuros passatempos.