Alice Rohrwacher é, em toda a sua essência, filha de Itália, e é dessa herança que tece a sua carreira sem um olhar defunto, sem um corte com os que antecederam, nem com indiferença a quem a procede. Itália, esse país, mais que isso, instituição, ideia, podendo experimentar como um mote para a reunião dos três tempos [passado, presente e futuro], estabelecendo no seu centro, um quarto, invisível, não estagnado, não morto, apenas vivo e confluído, uma alegoria. A partir da sua segunda obra – «As Maravilhas» (2014) – prosseguindo na felicidade do ignorante e quase mudo Lázaro («Feliz como Lázaro», 2018) e agora com «A Quimera», contemplamos um território à deriva nos diferentes estados-terrenos, personagens que equilibram entre os que viveram e os que viverão, na tristeza entranhada no olhar quase vítreo dos protagonistas (seja de Adriano Tardiolo, o nosso referido Lazaro, seja em Josh O’Connor, o Arthur aqui nos presenteado) e o passado, ora representado em memórias trovadas, ora enterrados em artefactos arqueológicos. Há diálogo neste constante trabalho de Rohrwacher ao longo dos seus filmes, e não apenas nos etruscos como alternativa da história italiana ou de marquesas iludidas e reféns da sua época, nos seus “castelos” em decadência, ou do contagiante realismo mágico com “pós” de Fellini a Pasolini. Não, esse tal diálogo (figuradamente falando) encontra-se naquela luz divina, carregada nas palmas da pequena Gelsomina (Maria Alexandra Lungu) em «As Maravilhas», fingindo beber dela os seus dotes celestiais (curiosamente «Corpo Celeste» é o título da sua primeira longa-metragem), ou aqui, Arthur “salvo” por esse contacto atribuído a algo que ultrapassa a sua existência, o destino talvez. Mas afinal do que se trata «A Quimera»? Um estrangeiro tragicómico, que tem tanto de cavaleiro da demandas de Olmi (uma das paixões cinéfilas de Rohrwacher) como do slapstick desajeitado de Jacques Tati ou Buster Keaton, preso numa miserabilidade cómoda e que mesmo, errante ou simplesmente encalhado, subsiste como talentoso “tombaroli”, termo atribuído a salteadores de tumbas de etruscos, ou violadores de sepulturas como bem entenderem apelidar, que saqueiam os objetos fúnebres para depois vender no mercado. Arthur, de dom (ou maldição, conforme a perspetiva) subaproveitado, convive na companhia dos desesperados, dos trafulhas e dos espirituais, ele é uma Itália invadida e perdida, mas não é a Itália que Rohrwacher anseia como modelo. Essa, uma dádiva que partilha igual nome do país, aqui incorporada por Carol Duarte, atriz brasileira potente em «Vida Invisível» de Karim Ainouz [belíssimo filme devo destacar], outra estrangeira portanto, mas é na sua intenção para com os três ditos tempos que nos apoiamos. O desejo, a reabilitação, a transformação, o respeito pelo sagrado, pelo profano e pelo memorialismo, a Itália hoje renegada para se chegar a outras oposições. Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um «Martin Eden» desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em «Futura» faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. «A Quimera» é somente a sua Caverna de Platão!
Título original: La chimera Realização: Alice Rohrwacher Elenco: Josh O’Connor, Carol Duarte, Vincenzo Nemolato, Isabella Rossellini, Alba Rohrwacher Duração: 130 min. Itália, França/Suíça/Turquia, 2023
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº107, Junho 2024]