Em «A Noite dos Reis» um jovem delinquente é enviado para MACA, uma prisão no meio de uma densa e verdejante floresta, às portas de uma cidade de betão na Costa do Marfim. Neste estabelecimento, quem exerce o poder são os prisioneiros e, nesse momento, quem lidera é o moribundo Barba Negra (Steve Tientcheu), que terá de ceder o seu lugar devido à fragilidade da sua saúde. Para prolongar o momento que leva qualquer líder na sua situação ao suicídio, e em noite de Lua Vermelha (ou de sangue), Barba Negra elege o jovem recém-chegado como Roman – O Contador de Histórias, encarregando-o de relatar uma história aos outros prisioneiros.
Num mundo de culpados, e sem grande possibilidade de sobrevivência, rapidamente Roman (Bakary Koné) percebe o poder deste papel que o Dangôro (chefe supremo) lhe atribuiu para ganhar mais umas horas de vida na verdadeira selva onde acaba de entrar. A partir daqui desenrola-se um cinema de performance, que nos abraça e aninha, enquanto viajamos no imaginário de Philippe Lacôte, entre memórias pré-coloniais e factos reais contemporâneos.
«A Noite dos Reis, a segunda longa-metragem de Philippe Lacôte, presente em Sundance, Veneza, Toronto, Roterdão, entre outros festivais, o realizador, natural da própria cidade de Abidjan, viaja entre a ancestralidade da oralidade e do ritualismo, e a história do país na última década, através do relato de Roman. Servindo-se da teatralidade, dança, poesia e canto, Lacôte vai ilustrando a narrativa através da expressão do narrador e dos ouvintes atentos, enquanto mergulha nas celas apinhadas e infernizadas, alternando com imagens da realidade de bairros sem lei, coladas com uma estética digna da aprovação da crítica.
Ao visitar a sua própria mãe enquanto prisioneira política na MACA, e talvez pelo facto de ter crescido junto a um cinema chamado “Magic”, Philippe Lacôte tem o condão de fazer magia ao criar um cenário que afirma ser inspirado no que relembra ser o interior do estabelecimento prisional, ao mesmo tempo que nos transporta para uma África ligada às suas raízes e às lendas contadas por líderes para entreter o povo, muitas vezes inspiradas nos arquétipos do inconsciente coletivo.
Apostando num protagonista que faz a sua estreia em cinema, o realizador costa-marfinense mostra sem constrangimento o talento dos seus pares. A expressão de Koné Bakar é forte e frágil, como a personagem que representa. Em África, como reflete o realizador no dossier de imprensa, “é muito fácil ir parar à prisão, seja porque se é pobre ou porque se é usado como um exemplo para garantir que as leis sejam respeitadas. As prisões estão cheias de jovens que nunca foram julgados, encarcerados durante anos em celas coletivas”. É aqui que encontramos Koné Bakar e os seus companheiros de cena, príncipes sem reino, deixados à mercê da história, da política e das memórias de um povo.
Como na verdadeira selva, salvam-se os mais fortes e os outros seguem o caminho que “Deus” definiu. Aliás, e como é referido em «A Noite dos Reis», “se Deus diz sim, ninguém pode dizer que não”. No entanto, até ao destino fatal de cada um, existe uma história que se desenrola e que podemos contar para entreter ou para assustar, para oferecer tristeza ou felicidade, que pode fazer a diferença ou não fazer diferença alguma. A história que Philippe Lacôte quis contar e a forma como escolheu fazê-lo fazem toda a diferença.
Título original: La nuit des rois Realização: Philippe Lacôte Elenco: Bakary Koné, Steve Tientcheu, Jean Cyrille Digbeu. Duração: 93 min. França/Canadá/Senegal/Costa do Marfim, 2020
https://youtu.be/JCDl8It9Ip0