Talvez já se tenha colocado a questão: se fosse um animal, que animal seria? Um exercício de imaginação ou talvez de vaidade para entreter tempos mortos. Em «A Lagosta» a escolha deixa de ser hipotética e torna-se em algo real. Mais do que isso, torna-se numa punição, no pior dos destinos. Situado num futuro próximo, o filme conta a história de uma sociedade distópica onde os solitários têm apenas 45 dias para encontrar um parceiro ou serão transformados num animal. Este, poderá ser da sua escolha caso falhem na sua missão mas cumpram todas as regras ou num atribuído pelas autoridades que será tão mais fraco e de vida perene quanto a gravidade das ofensas. O protagonista David (interpretado por Colin Farrell) escolhe ser uma lagosta por esta ter uma longa longevidade, sangue-azul como os aristocratas e ser fértil durante toda a vida. E porque gosta do mar. Esta descrição, a um tempo racional e patética, marca o tipo de humor que percorre todo o filme. A aridez dos diálogos, ditos de forma mono-tónica e sem emoção, com explicações que se tornam surreais de tão racionais, resultam em momentos hilariantes que garantem o sucesso do filme.

Quando recebi a sinopse estava preparado para ver algo como uma das inúmeras adaptações de «A Metamorfose» de Kafka ou o clássico «A Mosca» (1986) de David Cronenberg com todos os efeitos especiais e de caracterização das fases de transformação. Mas esse não é o interesse de Lanthimos e toda a parte da transformação é ocultada: apenas vemos uma porta que dá acesso ao local onde esta se realiza e duas linhas de diálogo com uma fugaz descrição do processo. O que parece interessar ao realizador é a desesperada tentativa de racionalização do ser humano perante o absurdo da vida. Tal como já o tinha feito nas obras anteriores – sobretudo em «Canino» (2009) – Lanthimos caminha em terrenos difíceis, próximos do universo de Michael Haneke. Em ambos, os modos e processos da civilização são vistos como absurdos e desumanos. Em «A Lagosta» a reflexão é feita sobre a necessidade, ou mesmo, a obrigatoriedade, de constituir família: de casar e ter filhos. Numa época em que o casamento e a adopção estão a ser vistos como uma certeza do politicamente correcto e não como um modelo normativo asfixiante ou uma instituição falida, a questão torna-se mais do que pertinente.

Mas voltemos ao argumento. David, ao chegar ao hotel, faz amizade com dois “condenados”: um coxo (Ben Whishaw) e um sigmático (vulgo “sopinha-de-massa”), interpretado por John C. Reilly. O trio discute as suas probabilidades de sucesso e as suas estratégias para consegui-lo. Cada um seguirá um caminho diferente: o coxo opta por enganar o sistema, o sigmático prefere iludir-se e acreditar que terá sucesso, enquanto que o herói irá contra o que lhe é imposto: primeiro foge do hotel para se juntar aos “solitários” e depois deixa-os para se juntar à Cidade. O herói percebe que ambos os sistemas são igualmente totalitários: se o primeiro obriga ao casamento, o segundo impõe a solidão. Um faz anátema da masturbação, o outro proscreve as relações sexuais. Será com uma míope (Rachel Weisz) e graças a um derradeiro sacrifício que consegue vencer o sistema.

A escolha dos actores, pese embora tenha funcionado, é algo desconcertante. Habituados que estamos a ver Colin Farrell no papel de galã musculado é uma surpresa vê-lo aqui barrigudo, com óculos, bigode e penteado a lembrar Geraldo Rivera. Mas Farrell mostrou-se à altura das exigências e foi devidamente reconhecido com vários prémios que lhe foram atribuídos pela sua interpretação. A ombreá-lo esteve Olivia Colman maravilhosamente no papel de directora do hotel; mas, de resto, os actores não tiveram interpretações de nota, talvez porque as personagens atribuídas eram justamente de pessoas anónimas, anódinas e alexotímicas: para as representarem tiveram que desaparecer. As roupas que envergam são tão sensaborronas quanto as personalidades das personagens. Numa das cenas – um baile no hotel – todas as mulheres estão com o mesmo vestido e os homens com o mesmo fato e gravata. Não se entenda isto, contudo, como uma falha; antes pelo contrário os figurinos de Sarah Blenkinsop são perfeitos para as personagens e para os cenários. Aliás, todo o filme tem uma enorme coerência visual. Por exemplo, o luxuoso Parknasilla Spa Resort de County Kerry (Irlanda) onde foram filmadas as cenas do Hotel, aparece com uma decoração impessoal e sem alma típica das grandes cadeias internacionais de hotelaria. Este é um mundo sem emoção nem gosto pessoal onde tudo é uniformizado e formatado. Coube à magnífica banda sonora preencher os vazios de sentimento e envolver as cenas como um bafo de calor humano.

A coerência que teve visualmente não parece ter sido alcançada de forma tão eficaz no que diz respeito ao argumento. O filme, por vezes, parece ser a adaptação de um livro mais complexo e que deixou partes omissas. Há várias passagens em que é exigido ao espectador que as complete com a sua imaginação. Se são falhas ou figuras de estilo caberá a cada um decidir. Mas, de forma geral, esta foi uma obra bem conseguida e, ironicamente, ao apresentar-nos um mundo cinzento, sem marcas pessoais ou identidade acabou por se tornar em algo com sabor, diferente e tenaz… como uma lagosta. NUNO VAZ DE MOURA

Título original: The Lobster Realização: Yorgos Lanthimos Elenco: Colin Farrell, Rachel Weisz, Jessica Barden, Olivia Colman, Roger Ashton-Griffiths Duração: 119 min. Grécia/EUA/Reino Unido, 2015

[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº38, Abril 2016]

https://www.youtube.com/watch?v=LTNZmOJxuAc
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