Com «Ilha dos Cães», Wes Anderson está definitivamente na sua praia. Até o espectador mais distraído já terá reparado que os filmes de “imagem real” do realizador texano têm vindo gradualmente a tornar-se reflexo de uma arquitetura visual própria do cinema de animação (com um nível de preciosismo que não é para todos os gostos…). Este não é o seu primeiro filme sacado da técnica stop motion – o outro, «O Fantástico Senhor Raposo» (2009), não estreou entre nós –, mas é aquele que, seguindo o universo de perfeitas composições de «Grand Budapest Hotel», o confirma como um virtuoso nerd das formas e da sua simetria. A saber, «Ilha dos Cães» é dos mais sofisticados exemplos deste tipo de animação artesanal, confiando aos cenários e bonecos de plasticina o poder de contar uma boa história, com humor recatado e emoção na medida certa. No caso, uma história de modelo muito americano, mas com alma e estética nipónicas.
Tudo se passa no futuro, na cidade japonesa imaginária de Megasaki governada por um tirano, líder de uma conspiração, que ordena o isolamento de todos os cães da metrópole na Ilha do Lixo, proibindo-os de regressar aos seus donos. Na sequência de tal decreto, um menino de 12 anos (por sinal, familiar do governante) decide ir de avioneta até esse lugar à procura do seu amigo de quatro patas, para o resgatar. A ele juntam-se cinco cães, que, pela nobreza de carácter, dir-se-ia serem autênticos cowboys domesticados – à exceção de um deles –, numa missão de honra. Inicia-se então o western em paisagem oriental, com uma série de “questões internacionais” da atualidade a fervilhar nas entrelinhas (a demagogia política, o ressurgimento dos nacionalismos, a crise dos refugiados…).
É sabido que Wes Anderson quis colocar neste filme o seu enorme fascínio pela cultura japonesa, e, pelo caminho, homenagear o cineasta Akira Kurosawa. O que não seria expectável descobrir aqui, no entanto, é o fulgor fordiano (de John Ford) que atravessa a narrativa. Há como que um diálogo cultural que é também um diálogo de cinema: como se Kurosawa se sentasse à mesa com Ford. E ver um filme de animação assente nesta ideia não é coisa pouca. Wes Anderson – que, convém lembrar, venceu o Urso de Prata em Berlim por este «Ilha dos Cães» – não falhou uma nota.
Confirma-se como uma das vozes mais originais do cinema americano contemporâneo, fazendo daquilo que à partida seria uma simples aventura de animação stop motion, uma cerimónia fílmica cinco estrelas. Por isso, é tão importante contactar com o humanismo destes cães no esplendor do grande ecrã.
Título original: Isle of Dogs Realização: Wes Anderson Elenco (vozes): Bryan Cranston, Koyu Rankin, Edward Norton, Bill Murray, Jeff Goldblum, Greta Gerwig, Scarlett Johansson, Frances McDormand, F. Murray Abraham, Tilda Swinton. Duração: 101 min. EUA/Alemanha, 2018