[Crítica publicada na revista Metropolis nº53, Julho 2017]
O filme de Pedro Pinho, «A Fábrica de Nada», criado por um colectivo ligado à produtora Terratreme, tem estado a coleccionar algumas distinções internacionais, a começar pelo prémio FIPRESCI (federação internacional de críticos), atribuído no âmbito do Festival de Cannes. Importa sublinhar este impacto, sobretudo porque é exactamente o oposto da estupidez cultural que gosta de proclamar que o cinema português é feito para as elites do «estrangeiro»… Ainda que fosse, qual seria o problema: um filme português, bom ou mau, está condenado a merecer menos atenção que o último golo marcado por Cristiano Ronaldo?
Acontece que os filmes podem ganhar prémios (e ainda bem…), mas não são feitos para os ganhar. E o impacto de «A Fábrica de Nada» deve ser visto, não através do palmarés de um qualquer festival, mas a partir da mais básica evidência. A saber: há nele qualquer coisa que lhe confere um subtil apelo universal, capaz de tocar as audiências mais diversas, sem perder a sua genuína dimensão portuguesa.
Os muitos textos que já escreveram sobre «A Fábrica de Nada» referem sempre o facto de, a certa altura, a história dos operários que tomam conta de uma fábrica, tentando contrariar os projectos de despedimento dos patrões, se transfigurar em… filme musical. Assim é, mas creio não devemos transformar os momentos encenados com música numa espécie de segredo «estético» para definir o trabalho narrativo do filme.
Aquilo que «A Fábrica de Nada» faz com as matérias musicais é apenas uma variante do seu método de contrastes e contradições. Assim, se é verdade que começamos por vogar numa paisagem típica de filme militante, não é menos verdade que o desenvolvimento da acção vai questionar tal rótulo, apostando num sugestivo jogo de variações dramáticas (de que a música é apenas uma momentânea hipótese).
Estamos, afinal, perante um objecto apostado em discutir os modos correntes de representar o trabalho e as relações de trabalho. Seria arriscado dizer que o emblemático «Tudo Vai Bem» (1972), de Jean-Luc Godard, funcionou como inspiração, mas podemos considerar que encontramos, aqui, os reflexos de um princípio eminentemente godardiano: o cinema é um instrumento de pesquisa e interrogação, vocacionado para discutir a ordem do mundo. Assim nós, espectadores, saibamos correr os riscos de percepção e pensamento que tal desafio implica.
João Lopes
Título original: A Fábrica de Nada Realização: Pedro Pinho Elenco: José Smith Vargas, Carla Galvão, Njamy Sebastião. 177 min. 2017, Portugal