É quase um cliché dizê-lo, mas a sua verdade é incontornável: na obra de Federico Fellini, Marcello Mastroianni desempenhou o papel do mais transparente “alter ego” do cineasta. Por causa da sua deambulação romana em «A Doce Vida» (1960), claro, mas sobretudo através de «Oito e Meio» (1963), odisseia intimista e surreal em que o actor era (também) um cineasta a perseguir, literal e simbolicamente, os seus fantasmas — a começar pelos fantasmas femininos. «A Cidade das Mulheres», lançado vinte anos depois de «A Doce Vida», constitui o capítulo final de tal processo, com Mastroianni a protagonizar uma odisseia deslumbrante e aterradora: no seu mundo de sonho ou pesadelo, tudo parece pertencer às mulheres, a ponto de, mesmo na sua mais radical sedução, elas o confrontarem com o possível vazio da sua identidade. Raras vezes o labor narrativo de Fellini terá assumido, assim, o gosto de desmanchar as certezas do real para além de qualquer fronteira palpável, como se o cinema se confundisse com uma psicanálise tão cruel quanto pedagógica — na arquitectura temática e mitológica de Fellini, «A Cidade das Mulheres» é, por isso, um momento essencial.
Título original: La Città delle Donne Realização: Federico Fellini Elenco: Marcello Mastroianni, Anna Prucnal, Bernice Stegers, Donatella Damiani, Ettore Mani. Duração: 139 min. Itália, 1980
[Crítica originalmente publicada na revista Metropolis nº41, Agosto 2016]