Vaiado em Veneza, em 2017, com «Mãe!», da mesma maneira como havia sido desprezada em 2006 com «O Último Capítulo», Darren Aronofsky ficou cinco anos sem lançar longas-metragens da sua autoria, apostando na carreira de produtor, com direito a um filme laureado com a Concha de Ouro de San Sebastián, «Pacificado», de Paxton Winters. No hiato, produziu curtas, séries e documentários, sem jamais desviar o seu interesse de premissas que se articulam com seu tema essencial: o excesso. Ao se deparar com uma peça teatral de Samuel D. Hunter que trata a desmesura em múltiplas perspectivas – na aparência e nos vetores sociais -, no caso, um texto chamado “The Whale”, o cineasta nova-iorquino de 54 anos viu ali uma jazida de ouro. A sua pepita mais preciosa é a conexão que Hunter faz com a palavra – objeto de culto para um realizador judeu que vê o verbo como o começo de tudo, como o “Faça-se a luz!” das narrativas miméticas -, partindo da literatura americana para fazer uma cartografia existencial do abandono, da condição sazonal que o indivíduo enfrenta de se ver náufraga de si mesmo.
Autor de pérolas como “Batleby, o Escrivão” (1853), o escritor Herman Melville (1819-1891) é o istmo que vai ligar uma ilha chamada Charlie ao continente da palavra, na sua dimensão mais lírica. Charlie é o personagem que Aronfsky toma emprestado da peça de Hunter. Um professor de literatura, especialista na prosa do século XIX, que vê em Melville um farol para as suas navegações pelo oceano do querer. Leu o que autor escreveu “Eu não sei nada sobre o que está chegando, mas seja o que for, eu vou até lá rindo” e tomou isso como lição para a sua vida, da mesma forma que repete, com retidão, um aforisma dele para os seus estudantes: “É melhor falhar na originalidade do que ter sucesso na imitação”. Detalhe: são estudantes que ele vê, mas não o veem, uma vez que ele alega ter um problema no seu computador para não ligar a câmara nos cursos via Zoom. De novo, vem Melville: “Aprendi que amigos as pessoas ganham mostrando quem nós somos”. Charlie sabe que o “mostrar”, nesse caso, não tem a ver com expor o seu rosto e, sim, expor a sua alma, ser generoso, doar a sua verdade. A verdade de Charlie é a verdade dos educadores, a vontade de inocular nas suas turmas a vontade da descoberta, a mesma que existe nos livros do autor de “Moby Dick”: “Sou atormentado por uma comichão incontrolável por coisas distantes. Eu adoro navegar por mares proibidos”.
Livro algum diz mais a Charlie do que “Moby Dick”. Não que ele se veja como o trágico Ahab, o capitão que singra mares a fim de arpoar a baleia que arrancou a sua perna. Ele se vê, sim, no lugar do tal cachalote, que é alvo de caça, um ser gigante que apenas deseja flanar pelas águas, seguir a nadar, pelo tempo que lhe resta. Charlie hoje pesa cerca de 200 quilos. Comeu em excesso como compensação para a perda do homem que amava, morto em circunstâncias que rondam a homofobia, a aceitação e o fanatismo do interior dos EUA. Charlie não desistiu de viver, mas precisa de algo mais do que as guloseimas que o levam ao risco de morte para continuar persistindo. Esta é a odisseia de «A Baleia» («The Whale»), o mais encantador de todos os concorrentes ao Óscar de 2023, sobretudo pela forma como o seu protagonista, Brendan Fraser, imola-se diante da câmara. É uma autopsia em corpo vivo da sofreguidão, numa interpretação esculpida a cinzel de ourives. Ninguém, em 2023, merece mais o Óscar de Melhor Ator do que Fraser, uma personalidade em fase de comeback, que brilhou no fim dos anos 1990 com «A Múmia» (1999) e «George – O Rei da Selva» (1997) e amargou anos de ostracismo por reagir a abusos e escolher papéis errados. A sua volta por cima é comovente.
Mas é uma volta que, no grande ecrã, está associada a uma profunda dor. O que dói em Charlie não são os quilos da obesidade mórbida que estão conduzindo-o para o fim, conforme alerta a sua amiga e enfermeira Liz (Hong Chau, numa afetuosa composição, também nomeada ao Óscar). O que lhe dói é a incapacidade (aparente) de fazer com que a filha com quem ele pouco tinha contato, Ellie (Sadie Sink), possa o aceitar no turbilhão hormonal da sua adolescência. A culpa que Charlie carrega não vem da escolha de ter deixado o seu casamento com a mãe de Ellie, Mary (Samantha Morton, precisa), para se casar com um ex-aluno por quem se apaixonou. A culpa no seu peito entupido de colesterol, regado a maionese, vem do facto de ele não ter conseguido fazer o rapaz, o seu amado, aceitar-se, livrando-se de todas as correntes moralistas do seu culto religioso, livrando-o do preconceito. Culto esse que volta a bater à sua porta, na figura de um missionário (Ty Simpkins), num momento em que Ellie reaparece, pedindo auxílio na Gramática. Num momento no qual a foice do excesso parece pesar sobre a sua cabeça.
Como já foi referido, “excesso” é a palavra primordial para entender a adaptação da peça homónima de Samuel D. Hunter, uma vez que a sua versão para as telas é esculpida por Darren Aronofski, o diretor de «Cisne Negro» (2010). Desde 1998, quando rasgou as cartilhas das convenções cinéfilas ao lançar «Pi», ele concretizou uma reputação singular como “O” cronista de tudo o que é excessivo. Do excesso das drogas (em «A Vida Não é Um Sonho» /«Requiem For a Dream») ao excesso da vaidade (visto em «The Wrestler», que lhe rendeu o Leão de Ouro em 2008), Aronofsky fala sobre pessoas no limite do aceitável, no transbordamento dos seus desejos, no limiar do tolerável. A saúde de Charlie não tolera mais nenhuma das asinhas de frango frito que ele devora, nem as fatias de pizza gotejantes de óleo deixadas à sua porta. Nem as suas citações literárias são suficientes para diminuir a sua angústia, afinal, onde a palavra é náufraga, a solidão é um porto. Mas se exceder é uma forma de ele se proteger e superar obstáculos. É como Melville dizia: “Acredito que meu corpo não passa de um abrigo para o meu melhor ser. Na verdade, que leve o meu corpo quem quiser, pois ele não é quem eu sou”. É do sentido existencialista da palavra “ser” – no caso, “ser pai” – que «A Baleia» fala, e de maneira linda, esmagadora. Fraser inscreve a sua atuação na Eternidade, na luz outonal da fotografia de Matthew Libatique, que desenha uma certa sensação de finitude no ar. Mas não é uma luz mórbida. É uma luz que nos inebria, ressaltada numa montagem traquicardia.
Título original: The Whale Realização: Darren Aronofsky Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Ty Simpkins, Hong Chau, Samantha Morton Duração: 117 min. EUA, 2022
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº92, Abril 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=6wcViJgnU_s