Elogiado sobretudo pela beleza contemplativa que emana dos enquadramentos oblíquos, dos planos longos e paisagens maravilhosas, «A Assassina» – filme que valeu a Hou Hsiao-hsien o prémio de Melhor Realizador em Cannes 2015 – não se pode reduzir a um mero exercício de estilo. É verdade que a estrutura labiríntica do enredo, assente em intrincados laços familiares e/ou de dependência, assim como os diálogos esparsos e elípticos podem dificultar o trabalho do espectador que, alheado da história, facilmente se deixa seduzir por pormenores visuais, sem dúvida deslumbrantes, mas que a todo o momento ameaçam ofuscar o dilema moral pungente da protagonista. Vale por isso a pena ver pelo menos duas vezes.
Serve de palco a este filme o culminar do século IX, na China. Um momento bastante conturbado em termos políticos, que anuncia o fim da longa dinastia Tang (618-907), e durante o qual foram produzidos os contos tradicionais em que Hou Hsiao-hsien se inspirou para contar a história de Nie Yinniang (Shu Qui). Raptada quando tinha apenas 10 anos, Yinniang foi treinada por uma freira taoista para se tornar uma assassina implacável. Encontramo-la passados vários anos, depois de ter adquirido inigualável domínio técnico das artes marciais; a sua destreza física, a natureza precisa, quase determinística dos seus movimentos contrasta, porém, com a hesitação que revela quando recusa levar a cabo a sua missão sanguinária. Desapontada, a freira decide punir Yinniang ao enviá-la para matar o primo, Tian Ji’an (Chang Chen), actual dirigente da importante província militar de Weibo e a quem em tempos Yinniang esteve prometida em casamento. O imperativo do dever, por um lado, e a incapacidade de ignorar os seus próprios sentimentos, por outro, colocam a personagem numa posição delicada e perigosa.
A densidade psicológica do papel e a exigência e sofisticação das coreografias de luta colocam um peso extra sobre a actriz, que se mostra absolutamente à altura do desafio. Shu Qui, que já tinha colaborado com Hou em «Millennium Mambo» (2001) e «Três Tempos» (2005), mistura como ninguém na sua expressão impassível a graça e a misericórdia – atributos pouco habituais na caracterização de uma assassina. De resto, é importante notar que o título e a promoção deste filme pode conduzir ao engano aqueles que esperam encontrar o típico filme de artes marciais. Não é que em «A Assassina» não haja muita acção, mas a somar à distância cultural que nos separa do contexto social e político que o filme tenta retratar de forma bastante fiel, existe também, creio eu, uma distância rítmica. A mesma que nos impede de observar a olho nu o desabrochar de uma flor. Apesar de desajeitada, a metáfora florícola quer chamar a atenção para a experiência bastante peculiar que este filme oferece e à qual vale a pena emprestar os olhos.
Título original: The Assassin Realização: Hsiao-Hsien Hou Elenco: Shu Qi, Chang Chen, Yun Zhou Duração: 105 min. Formosa/Hong-Kong/China, 2015
[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº33, Setembro 2015]