O arranque da história repete o começo de «Adivinha quem Vem Jantar?», um célebre filme de 1967. Eis o que acontecia há 50 anos: uma jovem branca (Katherine Houghton) tem um namorado negro (Sidney Poitier), combinando um jantar em casa dos pais (Spencer Tracy/Katharine Hepburn) para o apresentar. As coisas estão longe de acontecer de modo simples: embora crentes nos valores da igualdade e da liberdade de escolha, os pais consideram que há algo de «inadequado» na situação amorosa da filha…

Agora, em «Foge» [título original: «Get Out»], há também uma jovem branca e um namorado negro (Daniel Kaluuya/Allison Williams) e uns pais que, em todo o caso, surgem como genuínos liberais, sem preconceitos decorrentes da raça… Mas algo começa a correr de forma insólita, primeiro através da revelação de alguns pormenores bizarros daquele mundo tão clean, a pouco e pouco envolvendo comportamentos francamente inquietantes…

Há outra maneira de dizer tudo isto. Assim, no plano da cinefilia, «Foge» pode ser considerado como um herdeiro do melodrama liberal de Hollywood, agora perversamente desviado para os domínios do cinema de terror. Embora seja fundamental não revelar demasiado de a intriga (que, de facto, integra alguns sobressaltos que o espectador deve descobrir por si mesmo), digamos que estamos perante uma sábia conjugação de duas matrizes: por um lado, este é um genuíno filme de terror, capaz até de integrar algumas referências a modelos tão específicos como as produções dos anos 50/60, da Hammer Films britânica; por outro lado, a caminhada através de tais modelos não se faz através de uma intensificação dos respectivos artifícios, passando antes pela preservação de um realismo à flor da pele, muito cru no modo como expõe um discurso racista «banalmente» inscrito num quotidiano empenhado em cultivar a harmonia das suas próprias aparências.

«Adivinha quem Vem Jantar?» tinha assinatura de Stanley Kramer, produtor/realizador das causas liberais em tempos mais clássicos de Hollywood. Agora, «Foge» corresponde à estreia na realização de Jordan Peele, com o essencial da sua trajectória ligado à televisão (e, em particular, à série cómica «Key and Peele»). Dir-se-ia que os espíritos críticos do actual cinema americano cultivam, antes do mais, a memória — brilhante, subtil e desconcertante «Foge» é um belo antídoto contra a facilidade de todas as formatações.

Título original: Get Out Realização: Jordan Peele Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener, LaKeith Stanfield. Duração: 104 min. EUA/Japão, 2017

[Crítica publicada originalmente na revista Metropolis nº 49, Maio 2017]

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